Lúcia Cóias (1934 - 2023) A última viagem
Por mais sedentários que sejamos, todos nós somos nómadas. Ao longo da vida, vivamos onde vivamos, todos nós somos impelidos a viajar no espaço e no tempo. É como se fossemos templários à procura do Santo Graal. Só que a busca agora é outra e mais diversificada. À procura da espiritualidade, da beleza interior e da verdade, juntam-se agora outras necessidades de procura, de natureza material: trabalho, condições de vida, formação académica ou profissional, amor, paz, divertimento e muito mais que se poderia aqui enumerar. São necessidades que se traduzem em viagens, que temos o livre arbítrio de realizar ou não, se assim nos der na real gana. Todavia, para além destas viagens, há uma outra de natureza diferente, inescapável e com desfecho único, já que é uma viagem sem retorno, independente do nosso livre arbítrio. É a viagem que se inicia quando se transpõe a última etapa da vida e se diz que alguém morreu ou partiu. É uma viagem sobre a qual existem múltiplas interpretações, entre elas a da antropologia bíblico-cristã, mas qualquer delas ultrapassa o âmbito dos propósitos da presente abordagem textual.
Morreu a Lúcia da Singer!
Morreu a Lúcia da Singer! Foi uma notícia que correu célere em Estremoz, no passado dia 18 de Novembro e que me tocou particularmente. É que eu conhecia bem a Lúcia Cóias, seguramente há 70 anos, para além de ser amigo pessoal de seu filho Paulo Cóias e de ter sido professor de sua filha Cristina Cóias, bem como amigo pessoal de sua irmã, a poetisa Constantina Babau.
A Lúcia foi empregada da Singer em Estremoz, onde durante largos anos foi competente professora de costura, que marcou gerações e gerações de jovens mulheres. Tratou-se de uma actividade que, após a aposentação, prosseguiu com êxito na Academia Sénior de Estremoz, onde era muito estimada por todos os membros, sentimento partilhado, de resto, pela generalidade da comunidade local.
Poetisa do amor e da saudade
Como poetisa, Lúcia Cóias (1934-2023), é autora dos livros “Poesia Popular” (2015), “Rosas Brancas” (2016) e "Madrugada" (2018). No primeiro destes livros, em “Infância perdida” confessa: “Sem mãe fiquei aos três anos / E sofri horrores tamanhos / Num mundo que não era o meu / Senti-me sempre perdida / Sem alegrias na vida / E ela partira p’ro céu”. Lúcia ao perder a mãe, foi internada e criada no Asilo de Infância Desvalida João Baptista Rolo, em Estremoz, onde o internato gerido por freiras, a marcou para toda a vida. Ainda em “Infância perdida” confessa: “Tantas torturas passadas / Que não devem ser contadas / Pois ainda creio em Deus / Não sei bem porque razão / Vou dar-lhes o meu perdão / E os soluços ficam meus”.
Lúcia cresceu, fez-se mulher, casou e teve dois filhos. Todavia, perdeu o marido prematuramente, de tal modo que em “Saudade”, começa por se dirigir a ele nos seguintes termos: “Ó meu amor que agonia / Partiste naquele dia / Partiste p´ra não voltar / Meu coração está desfeito / Ficou-me esta dor no peito / Quase ceguei de chorar”. Termina o poema dizendo: “Sei que tu já estás nos céus / Lá bem pertinho de Deus / Se é que a outra vida existe. / Olha bem p’los teus filhinhos / Guia-os por bons caminhos / Consola a minha alma triste”.
O amor de mãe transborda no poema “Ao meu filho”: “A ti meu filho eu dedico esta poesia / Pelo milagre que o amor em mim te fez / Pois tu me deste a santa alegria / De ser mãe pela primeira vez”. O mesmo sentimento maternal transvasa igualmente no poema “À minha filha”: “Obrigada minha filha, eu te adoro / Pelo amor e carinho que me deste / Perdoa se estou triste e às vezes choro, / Tu sabes o que é dor pois já sofreste”.
O amor ao próximo
Na poesia de Lúcia Cóias, o amor não se se circunscreve à família. É mais vasto e assume, em particular, a forma de amor ao próximo. É o que nos revela o poema “Amar sem olhar a quem”, onde no final nos diz que: “Dar amor, dia após dia / Sem olhar à diferença / Não é loucura é magia / De quem tem alma e tem querença” e acrescenta: “Esta é a ventura maior: / Em cada ser ver um irmão. / É viver para dar amor / É ser alguém de eleição.” O amor ao próximo é um amor preocupado, como nos revela no final do poema “Oração”: “Que mágoa sinto em meu peito / Quando à noitinha me deito / Numa cama agasalhada / Lembro a Deus com muito afecto / Aqueles que não têm tecto / E dormem num vão de escada.”
Lúcia Cóias presente!
Lúcia Cóias partiu, mas deixou connosco uma enorme saudade, partilhada entre a família, os amigos e todos os que com ela conviveram. Deixou-nos igualmente a mensagem do seu exemplo de vida, da sua vontade de viver e de lutar contra a adversidade, bem como o seu legado de amor a Deus, à família e ao próximo. Por isso, Lúcia Cóias perdurará nas nossas memórias e nos nossos corações.
Publicado no jornal E, n.º 322, de 23 de Novembro de 2023